Justifica-se alvejar uma família inocente com oitenta tiros de fuzil? Não, não justifica.
O Exército sou eu! Quantas vezes eu, dono da verdade, vestindo a alma de militariedade, não disparei muito mais que oitenta tiros de palavras? Oitenta tiros? Oitenta tiros! OITENTA TIROS? Muito mais que oitenta tiros.
Muitas vezes, eu fiz o que os militares fizeram neste fim de semana. Julguei antes de conhecer, previ e ataquei. Quantas vezes eu, investido de suposta autoridade por mim mesmo concedida a mim, não fuzilei famílias inteiras de inocentes com pré-julgamentos, pressupostos e preconceitos.
Nossas instituições são falíveis por serem compostas por seres humanos. Seres humanos comuns, falíveis e errantes, tanto quanto eu. Justifica-se alvejar uma família inocente com oitenta tiros de fuzil? Não, não justifica. Mas [apesar da discrepância]...
...quando eu vejo um rapaz negro, da comunidade, “estilo maloqueiro”
e escondo o celular eu contribuo para que a cultura do preconceito institucional se perpetue. Quando eu olho e acho que serei assaltado por causa da cor do indivíduo,
eu inconscientemente estou concordando com o fato de que oitenta (80!) tiros foram
disparados contra uma família em um carro “suspeito”.
Mas, mais do que esfera a social-ideológica, precisamos considerar a esfera relacional da vida: quantas vezes faço juízo de valor de alguém por uma frase dita, uma ação tomada, ou, quem sabe, simplesmente porque “não fui com a cara dele (a)”? quantas vezes julgo alguém antes de conhecer, de fato? Julgo baseado em pressupostos de idoneidade e, claro, tais pressupostos estão encharcados de minhas ideologias formadoras.
Consegue compreender o quanto isso afeta minhas relações? Julgo aleatoriamente, sem dados, sem fatos e sem provas...
Decido, quase que inconscientemente, que a pessoa “x” não é legal por pensar
diferente de mim, que a “y” é menos inteligente por votar diferente de mim,
que a “z” não é digna de minha amizade por crer diferente de mim...
E com isso saio a disparar muito mais que oitenta tiros. Por vezes, eu disparo desprezo; outras vezes disparo ironia, sarcasmo; não raras vezes disparo olhares de altivez e superioridade. Isso quando não disparo “verdades sinceras” que em nada edificam a vida do outro.
Tudo em nome do que? Da minha preguiça de descer do pedestal ideológico e procurar observar o outro por quem ele é e não pelas lentes do que eu enxergo. Prefiro permanecer em minha zona de conforto ideológico a reconhecer que aquele outro é tão humano e, por isso, digno quanto eu. Custo a crer que aquele ser humano tenha algo produtivo a me oferecer, simplesmente porque não quero abrir mão do meu orgulho causado pela cegueira ideológica.
Mas eu posso mudar? Claro que posso! Eu posso decididamente pegar meus pressupostos, guardar na caixinha e ir ao campo da vida relacional ver se eles se comprovam ou não. “Mas eu temo que meus pressupostos sejam falíveis!”. Talvez eles sejam mesmo. Mas eu só tenho a ganhar nos relacionamentos, ao abrir mão dos meus pré-conceitos, pressupostos e pré-julgamentos. Minha vida será menos amarga e certamente, nos relacionamentos, todos ganham!
O Exército sou eu! Eu já disparei muito mais que oitenta tiros. Mas eu quero mudar?...
Eric de Moura.
(Reprodução/Veja).