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Desemprego: a crise do não ter e do não ser

Depois de mais de dez anos sendo economicamente ativo entrei na estatística dos milhões de desempregados no Brasil. Essa nova etapa em minha vida me fez perceber o quanto nossa sociedade valoriza mais o fazer do que o ser. Praticamente todo mundo que me encontra me pergunta se já estou fazendo algo. Como se o não fazer tirasse todas as prerrogativas do que sou. De fato vivemos num contexto em que parece que você não é se não fizer.


Essa convenção social coloca sobre muitas pessoas um peso e um senso de inutilidade muito maior do que elas possam suportar. É normal vermos pessoas, desempregadas, desesperadas a procura de emprego. Praticamente todos que estão nessa situação têm como frase, quase que um mantra, “eu preciso de um emprego”. Por causa dessa situação muitas pessoas se submetem aos trabalhos informais e passam a viver completamente desamparadas pela legislação que protege o trabalhador. Inclusive em uma sociedade de mercado, como a nossa, o não trabalhar gera desespero que por fim abre espaço para exploradores que oferecem, até sem a pessoa perceber, uma rotina de trabalho plenamente escravagista.


Deixando claro que de maneira nenhuma estou defendendo a inatividade pela inatividade, ou incentivando a vagabundagem e a preguiça. A Bíblia é muito clara quando o assunto é o trabalho. Ele é estabelecido por Deus: O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo (Gênesis 2:15). A preguiça e ociosidade são condenadas: Até quando você vai ficar deitado, preguiçoso? Quando se levantará de seu sono? (Provérbios 6:9). Se alguém não quiser trabalhar, também não coma. Pois ouvimos que alguns de vocês estão ociosos; não trabalham, mas andam se intrometendo na vida alheia. A tais pessoas ordenamos e exortamos no Senhor Jesus Cristo que trabalhem tranquilamente e comam o seu próprio pão. (2 Tessalonicenses 3:10-12). Por fim, o trabalho produz satisfação e desfrutar do resultado do trabalho é um presente de Deus: Descobri que não há nada melhor para o homem do que ser feliz e praticar o bem enquanto vive. Descobri também que poder comer, beber e ser recompensado pelo seu trabalho, é um presente de Deus (Eclesiastes 3:12-13).


Meu ponto é questionar as lógicas de uma economia de mercado e de uma sociedade de mercado. Economia de mercado é o mundo das metas, da produtividade, do lucro e da recompensa. Quando essas regras extrapolam para a vida toda passamos a ter uma sociedade de mercado, onde se valoriza as pessoas com os mesmos critérios da economia de mercado. As pessoas passam a ser reconhecidas pelo seu trabalho e pelo seu ganho. Quem já não ouviu, ao ser apresentado, a pergunta: qual é o seu trabalho? O ganho passa a ser um medidor de valor. Se você ganha x e outra pessoa ganha dez x, então ela vale mais que você. E se você não ganha nada, então você não vale nada. E se você não produz nada, você também não vale nada. Essa é a razão porque as pessoas em situação de desemprego são acometidas de um senso de desvalor. Elas começam a ter vergonha por estarem desempregadas como se fossem criminosas ou doentes. Vivem o constrangimento diário de encontrar pessoas e serem indagadas se já encontraram trabalho.


Lembro-me como meu pai ficou quando foi mandado embora. Me vem à mente, claramente, suas andanças pela casa de cabeça baixa e a vergonha por não conseguir suprir as necessidades familiares. Ele se afundou num estágio depressivo que quase o derrubou. O que dizer das donas de casa? Recentemente presenciei uma cena em que estava no cartório e ao abrir firma, uma mulher foi perguntada sobre sua profissão, ela abaixou a cabeça e bem constrangida disse ser dona de casa. Muitas mulheres que trabalham em casa não conseguem valorizar o que fazem, ou pior, são casadas com maridos que vivem jogando em suas caras que elas não fazem nada. Tudo isso por causa dessa lógica de medir as pessoas pela régua do emprego e da sociedade de mercado.


Infelizmente hoje em dia as pessoas não são mais enxergadas pelo que são, mas sim pelo que fazem. A atividade profissional passa a ser maior e mais importante do que a própria pessoa em si. Claro, que ter um emprego é extremamente importante, sem emprego sem renda, sem renda sem condições de se manter e suprir as necessidades básicas. Em momento algum coloco sobre judicie a importância de ter uma profissão e um emprego. E muito menos escrevo como que querendo achar argumentos para não fazer nada. Nada disso. Minha reflexão visa apenas questionar lógicas que geram angustia e fardo sobre qualquer pessoa que esteja nesse momento de desemprego.


Conceituando trabalho e emprego

Importante também é não confundir trabalho com emprego. Trabalho é cooperar com Deus para pôr ordem no caos. A definição sociológica para trabalho é o esforço humano dotado de um propósito e envolve a transformação da natureza através do dispêndio de capacidades físicas e mentais. É algo que é construído a partir de um ideal, um crescimento, uma contribuição para o mundo. O trabalho não tem valor financeiro, mas pode ser remunerado[1]. No princípio, somos informados pela Bíblia, que Deus estava trabalhando: No princípio Deus criou os céus e a terra (Gênesis 1:1). Também é dito que o Espirito lá estava fazendo seu trabalho de colocar ordem naquilo que era caos: Era a terra sem forma e vazia; trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas (Gênesis 1:2). E ao homem foi dado a função de cuidar do jardim que Deus havia criado. Ou seja, o trabalho do homem consistia em cultivar e expandir o jardim de Deus, levando beleza e cultura, manifestando a imagem e semelhança de Deus e tudo aquilo que ela produz.


Emprego por sua vez é atividade que gera resultado financeiro. É o ofício que dá dinheiro, e ele é desenvolvido exclusivamente com essa intenção. Toda atividade que não agrada, e é desempenhada exclusivamente para render lucro financeiro, se enquadra na palavra[2]. Trabalho está relacionado com demandas de produção e lucro. Inclusive, emprego é um conceito que surgiu por conta da Revolução Industrial, sendo definido como a relação entre homens/mulheres que vendem sua força de trabalho por algum valor, alguma remuneração, e homens/mulheres que compram essa força de trabalho pagando algo em troca, algo como um salário.



A importância da identidade a partir do ser

Toda essa lógica de mercado tem gerado pessoas estressadas e que só pensam em fazer mais para poder lucrar mais. Essa é uma das razões pela qual Deus institui o mandamento do sábado, para lembrar que a pessoa é mais importante que sua atividade e que a atividade não pode ser maior do que a pessoa. Precisamos lembrar que Deus valoriza muito mais o ser do que o fazer. Ele olha e se relaciona conosco por aquilo que somos e não por aquilo que fazemos. Um claro exemplo disso é o batismo de Jesus, antes do inicio de suas atividades ministeriais onde Deus diz para ele: "Este é o meu Filho amado, em quem me agrado" (Mateus 3:17). Com isso o Pai estava afirmando a identidade do Filho a partir do que ele é e não a partir do que ele faz. É como se Deus estivesse dizendo para Jesus: Lembre-se de quem você é e que eu te amo pelo que você é independentemente de tudo o que você irá fazer. Antes de Jesus fazer ele é lembrado de quem ele é, o filho amado do Pai.


Que nós, que estamos sem emprego percebamos que não estamos sem trabalho, pois tudo aquilo que fazemos para cooperar com Deus é trabalho. Que continuemos em busca de atividades remuneradas, porque isso é absolutamente licito, porém, sempre lembrando que Deus é quem nos sustenta e não nos deixará faltar nada nesse período sem remuneração. E que não permitamos sermos definidos pelo que fazemos e não pelo que somos. E o que somos? Filhos amados por Deus com ou sem emprego.

Ismael Braz | Teólogo, professor.

[1] https://www.febracis.com.br/blog/diferenca-entre-trabalho-e-emprego/

[2] Idem.

Imagem: Internet/reprodução.


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