O Além Entrevista a jornalista Luciana Barreto. Ela nasceu em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense (RJ). Faz questão de sempre dizer sobre sua origem pobre e do desafio de sua formação (sua faculdade ficava cerca de 80 a 90 km de sua casa), que influenciaria em seu caminho profissional e militância social.
É jornalista há mais de 17 anos, formada pela PUC-Rio, passou por experiências no Canal Futura, Band, GNT e atualmente, exerce a profissão na TV Brasil como âncora e editora-executiva do Repórter Brasil Manhã (Seg. a sex. 9h30), um dos principais telejornais do canal público. É mestranda em em relações étnico-raciais.
É também engajada em movimentos sociais, que envolvem pautas ligadas as mulheres e ao movimento negro. Sua atividade jornalística é muito influenciada por esses valores de luta, que a faz destacar casos, projetos e pessoas ligadas aos Direitos Humanos. Inclusive hoje (14) a jornalista exibe no Repórter Brasil, uma série de reportagens mostrando como os negros ficaram após o dia 13 de maio, quando a 130 anos aconteceu a abolição da escravatura.
Luciana Barreto tem uma carreira premiada. Em 2012, recebeu o prêmio jornalístico Prêmio Nacional de Jornalismo Abdias Nascimento, em 2012, pelo programa “Caminhos da Reportagem – Negros no Brasil: brilho e invisibilidade”. Em 2015, foi escolhida pela ONG Think Olga, umas das 100 Mulheres Inspiradores.
Neste ano, a jornalista recebeu título de Embaixadora de Turismo do Rio de Janeiro, pela visibilidade dada ao Estado, por meio de seu trabalho em pautas ligadas à diversidade. Via telefone, a jornalista falou sobre sua experiência no jornalismo, além de responder questões sobre racismo, cotas para negros nas universidades entre outras questões ligadas a essas pautas. (Leia entrevista abaixo):
(Facebook/Divulgação).
Além Portal (AP): Como nasceu seu interesse pelo jornalismo, qual foi o maior incentivo? Houve alguma barreira para decidir por esta profissão?
Luciana Barreto: Eu sou daquelas pessoas, daquelas crianças que nascem dizendo... aquela profissão que você nasce dizendo que vai ser!? O jornalismo foi assim para mim. Eu nunca me entendi com outra profissão. Era aquela profissão que desde criança eu falava: "ah, quando crescer vou querer ser jornalista!". Então, era meu sonho de infância. Nunca tive outro sonho. Então... É, isso é muito claro.
(...) Eu não tive nenhum problema para decidir e meu maior incentivo foi a minha própria história de vida. Venho da periferia do Rio de Janeiro. Sou a primeira universitária da minha família, e cresci vendo muitos problemas ligados às violações de Direitos Humanos... Vi que isso não era pauta de nenhum lugar, a gente não tinha interesse pela televisão, dos jornais, de nenhum lugar. Não tinha quem denunciasse. E aí, eu acho que o meu interesse vem disso, desse tipo de jornalismo que faço hoje: que é um tipo de jornalismo de denúncia, de investigação, muito mais ligado a isso, ligado a
pauta de Direitos Humanos.
"Sou a primeira universitária da minha família,
e cresci vendo muitos problemas ligados
às violações de Direitos Humanos."
AP: Depois de ter passado por veículos como o Canal Futura, a GNT, a Band e o BandNews, por que a decisão de seguir carreira no jornalismo público?
Luciana Barreto: Eu fiquei muito assustada quando eu saí da Band e recebi o convite para o jornalismo público. Porque eu mesma não conhecia o jornalismo público e vim para uma TV que era muito sucateada nessa época. Nessa época, eu recebi um convite com um projeto inovador, de ter um jornalismo público forte, Federal, que crescesse... E eu me encantei, me encantei mesmo, porque, na verdade, era o "casamento" perfeito entre tudo que eu acreditei e a possibilidade de colocar em prática esse tipo de jornalismo que sonhei. Esse jornalismo que investiga, esse jornalismo que está mais perto do povo. Esse jornalismo que respeita regionalismos, que respeita o cidadão, respeita a voz do cidadão, os interesses do cidadão... Então, isso foi um "casamento" perfeito para mim!
AP: Você já vivenciou ou presenciou um ato de preconceito racial? Qual foi sua visão sobre o ocorrido e se o ato de alguma forma mudou algo em você?
Luciana Barreto: Sim, claro! Não existe um negro no Brasil... Apesar de alguns negarem. Aí por "n's" problemas... Não existe um negro no Brasil, que não tenha ou sofrido preconceito ou vivido isso de muito perto. Impossível! Muitas vezes o preconceito racial, ele já vem na própria família, porque a gente no Brasil, a gente tem família miscigenada, então, essa miscigenação ela é... O que ela tem de positivo ela tem de cruel também, a gente sabe disso.
Porque a gente hoje vive nesse "sistema brasileiro" que é: quanto mais clara a cor da pele mais oportunidade você tem, quanto mais escura, menos oportunidade, e é mais difícil a vida de quem tem a pele mais escura. Então é muito difícil falar de alguém que não sofreu preconceito no Brasil... É difícil perceber alguém que nunca foi encaminhando no elevador de serviço, nunca foi confundido com um trabalhador braçal. Às vezes é o intelectual ou professor que entra na sala de aula e é confundido com o faxineiro... Isso a gente não está fazendo juízo de valor obviamente, a gente está falando como funciona a cabeça do brasileiro... Ou que nunca foi parado pela Polícia (risos). Dirigindo seu próprio carro foi confundido com seu motorista... E por aí vai, isso é muito comum!
"Não existe um negro no Brasil,
que não tenha ou sofrido preconceito
ou vivido isso de muito perto."
(Facebook/Divulgação).
AP: Em suas palavras, como você define o racismo, a discriminação e o preconceito racial?
Luciana Barreto: O preconceito, ele é um sentimento, então... Todo mundo tem preconceito de alguma coisa, é um sentimento que você tem com o diferente, (...) e ninguém consegue legislar sobre o preconceito. Porque você não legisla sobre o sentimento, no geral não acontece isso.
Agora, a discriminação sim! É o preconceito exposto em atitudes. Então você, a partir do momento que você sente esse preconceito e você tem atitudes que mostram isso, você discrimina. E discriminação é um problema, a gente já legisla.
E o racismo é você impedir... A discriminação é um problema que você consegue legislar sobre ele, sobre essa atitude... E o racismo é uma atitude ainda mais dura, é você impedir que o outro na nossa legislação brasileira, você impedir que o outro tenha acesso ao que a Constituição garante, os direitos iguais. Agora sociologicamente, a gente também pode falar do racismo, como um problema mundial que é colocar uma raça superior a outra, é uma tentativa eterna da humanidade que tem haver com a garantia de privilégios, sempre, uma etnia ou grupo étnico, que na verdade quer ter a garantia de seus privilégios inferiorizando outros grupos, e aí é um problema de ideologia.
AP: Sobre o avanço dos negros à universidade: qual o impacto dessa conquista no espaço acadêmico e o avanço que vem causando na sociedade?
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Luciana Barreto: Eu acho que esse aí é o grande lance que a gente tem. Porque, na verdade, tem até um autor que eu gosto muito e ele fala um pouquinho sobre essa questão, do posicionamento dos negros na sociedade, sobre como funciona isso, esses passos que são do movimento negro, e a gente fala de um primeiro passo, que é um passo de submissão, ao qual todos nós estamos submetidos mesmos, porque você nasce sobre esse processo, dessa ideologia que tenta te inferiorizar e isso nos meios de comunicação... Você já nasce sobre essa ideologia.
Num segundo momento, você tem aquele impacto quando você percebe que “Não! Isso não pode ser real. Isso não pode acontecer. O meu cabelo crespo não faz de mim uma pessoa inferior, menos inteligente ou mais incapaz”.
Num terceiro impacto, a gente vai pra militância. E, aí sim, a gente consegue por todos os ângulos, tentar militar de muitas vezes com o próprio corpo: o nosso cabelo que vai encrespando, o reconhecimento da nossa cor e da nossa negritude, a nossa vestimenta que, às vezes fica mais parecido ou mais próxima de África... Só que isso não modifica a estrutura racial da sociedade brasileira, essa estrutura discriminante. E aí vem esse grande lance, que ele fala, que é o processo de articulação: é quando você não só se junta, mas você ocupa determinados espaços para modificar a estrutura de preconceito racial, a estrutura racista que a gente vive. E acho que esse ingresso dos negros no campo acadêmico, não só formulando pesquisas, ocupando determinados espaços que nunca foram avançados pelo povo negro, eu acho que ainda está nesse processo, de articulação e tá nesse processo de mexer, de modificar a estrutura.
"(...) esse ingresso dos negros no campo acadêmico, não só formulando pesquisas, ocupando determinados espaços que nunca foram avançados pelo povo negro, eu acho que ainda está nesse processo, de articulação e tá nesse processo de mexer, de modificar a estrutura."
AP: Para você existem estereótipos (por exemplo: morar em determinado lugar; ouvir determinando tipo de música) colocados pelos movimentos negros, que poderiam ser interpretados como imposições deles aos próprios negros e limitariam estes em seu desenvolvimento social?
Luciana Barreto: Eu acho que a gente trabalha pela liberdade. A liberdade é o grande lance. Ter uma mente livre, e realmente livre e ser livre, e não só livre como a gente conseguiu nossa emancipação política e jurídica com 1888, a Abolição, mas uma emancipação real de estar em qualquer lugar, de falar o que quiser e, inclusive, de ter relacionamentos com quem a gente quiser e, sim, também ouvir o que a gente quiser, estar onde a gente quiser, cantar o que a gente quiser, falar o que a gente quiser, esse deveria ser o nosso norte. É lógico que a gente está muito longe disso, mas, (....) eu não acho que estar ligados a determinadas músicas, determinado local, talvez numa conjuntura, pensando conjunturalmente, entendeu?
Mas se você pensar num processo mais de liberdade mesmo, você vai perceber que não, isso daí não existe, entendeu? O negro ser colocado em determinado local, traduzindo: o fato da gente estar ligado ao samba, ao rap, ao funk, ou seja lá o que for, culturalmente, mostra a nossa possibilidade de liberdade. Assim como a gente pode estar ligado a música clássica, MPB e tudo que a gente quiser. Isso é liberdade. Se relacionar com quem quiser é liberdade, entendeu!? Fazer o que quiser, falar com quem quiser, falar o que quiser e onde quiser, é liberdade!
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AP: O brasileiro em geral diz que não é racista. Porém, por que se tem tanta dificuldade em tratar do assunto nas famílias, escolas, universidades e entre amigos?
Luciana Barreto: A resposta é muito simples: O brasileiro é racista, é muito racista.
AP: Para você, o negro conquista seu espaço na sociedade brasileira dependendo mais de uma mudança estrutural (que inclui o negro nos diversos seguimentos; cotas; incentivos do Estado etc.) ou ele mesmo de forma individual, deve lutar por seu espaço?
Luciana Barreto: Na verdade, uma coisa não exclui a outra. Eu sou a favor das políticas reparatórias, entendeu? E acho que... Devem a gente essas políticas reparatórias, sim. E isso não faz com que exista essa luta individual, muito pelo contrário, ela ajuda na luta individual sim. Agora essa coisa da luta individual, do mérito pessoal, é uma coisa que a gente tem que ter muito cuidado, porque a meritocracia é um problema, é um discurso muito utilizado por conservadores que tentam justamente, o tempo inteiro, resistir à possibilidade de um povo que foi bem massacrado conseguir direitos iguais.
Então, o mérito pessoal é algo que não consigo, que eu não gosto de lidar. E as políticas reparatórias fazem parte desse processo de articulação pra que a gente supere tantos anos de escravidão. Tantos anos de política pública pra colocar o negro num lugar de subalternidade.
AP: Qual a importância, e sua visão, de se ter um dia do ano para se falar sobre consciência negra. Por sinal, muitos criticam o ícone deste dia, Zumbi dos Palmares, para você: herói ou não?
Luciana Barreto: A “branquitude” sempre vai ter essa resistência de falar de qualquer coisa que tenha essa questão racial. Nessa hora, eles encontram aquele discurso de que “somos todos iguais!”. Então, eu já desde sempre tenho pra mim que não fico recuando tentando responder a determinados grupos e determinadas pessoas, não! Eu tento avançar, não volto para tentar responder esse tipo de polemica, não! Avançar mesmo!
E Zumbi, é claro, foi um herói, e é claro que ele tem a história dele modificada, principalmente pelo movimento negro, para ele se tornar esse herói, principalmente na década de 70, quando o movimento negro tenta tirar aquela coisa do 13 de maio, leva pro 20 de novembro, e faz essa imagem de Zumbi. E hoje, muita gente reconhece, tanto o 13 de maio como o 20 de novembro. Reconhece o 13 de maio não na pessoa da Princesa Isabel, mas pelo protagonismo de luta, de resistência do próprio negro. De abolicionistas negros também que culminaram no 13 de maio.
AP: Quais são para você os maiores ícones de luta pelos direitos do negro?
Luciana Barreto: Para eu não cometer um “crime”, nenhum erro, eu vou falar do nosso grande Abdias do Nascimento e na pessoa dele, eu vou representar todos os principalmente no século passado, já num processo... Na República.... Processo republicano, pelos nossos direitos, pelos avanços que a gente tem acompanhado hoje. É lógico que se eu fosse lembrar de todos eu teria que lembrar dos abolicionistas, eu ia ter que lembrar, enfim, do Brasil Império... Na pessoa do Abdias do Nascimento eu lembro de todos os nossos grandes ícones.
Com informações de:
(TV Brasil/Divulgação)