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"Se discute sobre tudo, menos sobre igualdade", diz teólogo negro

A história dos negros no Brasil nunca teve um consenso. Na verdade, o Brasil é apenas mais uma das nações que foram influenciadas pela mentalidade escravagista que o mundo ocidental produziu. O dia da Consciência Negra já é comemorado desde a década de 1960, a ideia inicial era coincidir com a morte de Zumbi dos Palmares, morto em 20 de Novembro de 1695, até onde se registra. Longe de sugerir qualquer polêmica, o dia seria para refletir a respeito da inserção do negro na sociedade, (o que por si só já seria polemicamente incoerente, pois parte do pressuposto de que o negro não é humano como os outros) o dia já é uma polêmica. Polêmica porque ninguém quer falar de racismo ou preconceito, e embora ele exista como comprovado pela realidade do negro no Brasil, não queremos sobre nós a ignorância de dividir as pessoas pela cor da pele. Infelizmente, se construiu no Brasil uma cultura onde se fala de preconceito para fingir que ele não existe, e se fomenta uma luta racial que alimenta um sistema que em nada contribui para a igualdade em nosso país.


Igualdade, o verdadeiro direito

É muito comum, por exemplo, quando alguém encontra um negro, querer falar do quanto ele não é preconceituoso, porém a questão é bem mais profunda que isto. Não é apenas o discurso que precisa de mudança, o que de fato precisa ser alterado é a mentalidade cultural de nosso país. Do ponto de vista social, as coisas estão muito longe de terem um final feliz, na minha concepção, o foco está na direção errada. Passamos horas discutindo cotas raciais, obrigatoriedade de negros em empresas, em repartições, concursos, vestibulares e etc., mas não estamos falando sobre igualdade. Aqueles que ergueram suas vozes, como Luther King, Mandela, Rosa Parks e outros, não queriam nada mais do que igualdade. Não se pode inverter o que de fato é importante para equalizar essa realidade. A resposta para o racismo e o preconceito é essa palavrinha, tão esquecida, aliás, tão simples que nem sempre representa seu valor etimológico. Vamos lembrar das grandes lutas raciais em torno do mundo?


Uma das características do Iluminismo do século XVIII era seu apreço pela palavra “liberdade”, porém, muitos dos intelectuais desse período simplesmente ignoraram essa realidade, com raríssimas exceções, quando o assunto era a liberdade da escravidão de negros. Mas não podemos negar que o Iluminismo influenciou profundamente as medidas que posteriormente foram tomadas para dar força ao movimento chamado de “abolicionismo”. O feudalismo da época e a expansão comercial foram marcas registradas para que o escravagismo tomasse força; também não podemos deixar de fora o fato que negros “vencedores” venderam seus irmãos “derrotados” a troco de dinheiro e regalias com o ocidente europeu. Mas isso começou a mudar com esse apreço pela “liberdade” e pelo pensamento livre dos homens.


O Século XVIII trouxe mudanças radicais ao mercado e à política. Porém, antes disto já havia fortes movimentos religiosos, principalmente protestantes, que erguiam a voz em torno da humanidade perdida e também da igualdade de todos os homens diante de Deus. Vale lembrar que a Inglaterra se manteve à frente do mercado de escravos por mais de um século, diferente das outras nações europeias onde o iluminismo foi muito mais eficaz tempos antes. A Inglaterra, que iniciou o debate para o fim da escravidão já por volta de 1807, pressionou por meio do mercado o mesmo fim para outras nações com quem mantinha relações comerciais, e isso incluía Portugal, e posteriormente, o Brasil. Em Portugal, por exemplo, surgiu a expressão “para inglês ver”, pois apesar de no papel manterem o fim do tráfico de escravos negros, mantinham a escravidão na prática, e só teve fim mesmo por volta de 1850. No Brasil, após a independência em 1822 o assunto ficou na tela principal, uma vez que a relação com o restante do mundo ficava abalada, tendo no Brasil uma política escravagista. Porém, o fim da escravidão como prática oficial se deu em 13 de Maio de 1888 com a Lei Áurea.


A lei que aboliu a escravidão, nunca resolveu o problema que a escravidão e abolição criaram. Pois aqueles que eram escravos simplesmente não tinham mais nação, nem nome, nem nada. E da noite para o dia se viram livres, mas livres do quê? O que se seguiu depois foi apenas consequência; livres, mas sem ter como sobreviver, aceitaram retornar às fazendas, e apesar do fim da escravidão, continuavam assim interiormente. A escravidão roubou a dignidade de negros em torno do mundo todo, lhes tiraram a humanidade, os trataram como “bichos” obrigados ao trabalho, para logo depois os transformar em “bichos de estimação doméstico”. Não se engane, ainda fazem isso até hoje. A questão é que agora o problema não está entre brancos e negros, aliás, nunca foi, mas de um sistema de poder que conta a história conforme sua necessidade final.


Negros não são piores ou melhores, negros são humanos. A questão é biológica, mais melanina, menos melanina, mas o restante é completamente igual. Precisamos transpor essa barreira, encarar que não precisamos ficar o tempo todo querendo esfregar na cara da sociedade a dívida, nós não somos escravos, ainda que nossos antepassados tenham sido. Isso é uma questão de escolha, de opção, de igualdade. O mundo precisa disso, pessoas que sonhem para além das possibilidades, que enxerguem o alvo, não como desfavorecidos carecendo da bondade governamental ou de movimentos, ou de “amigos cool”, que acham legal oferecer para o mundo seus amiguinhos “diferentes”. Nossa capacidade está aí, fomos criados humanos, imagem e semelhança de um criador comum a todos, somos inteligentes, capazes, e ainda que nos digam o contrário, precisamos pregar à nossa própria consciência que todos são iguais, não concorremos com brancos, amarelos, marrons, ou pretos, somos todos iguais, cada um com o seu toque especial.


Meu bisavô por parte de mãe era preto descendendo diretamente de escravos, mas naquela época, contrariando toda a história que os separavam, se casou com uma mulher branca e italiana. Por mais incrível que possa parecer, os pais da minha avó eram um negro e uma mulher branca também. Isso é importante para mim, porque sempre me ensinou que essas diferenças são ridículas, absurdas e que somos mais importantes do que isso. Uma vez uma pessoa me disse que eu era racista porque minha esposa é branca e eu sou negro, mas aquele diálogo só serviu para mostrar quem de fato é racista, ainda que não nominalmente, mas na prática, como uma cultura social e separatista antagônicas que existe neste país, inclusive nos meios religiosos.


A verdade é que somos livres, a verdade é que somos iguais, há uma graça que nos iguala a todos, você pode se casar com quem quiser, com quem amar e decidir dividir a vida, ainda que isso contrarie os marcos de fronteiras que uma sociedade separatista propõe. A questão então, não é o que de fato foi feito aos pretos de todos os tempos, mas o que nós, senhores de nosso próprio destino, faremos com isso hoje.

A dívida histórica do brasil com os negros

O Brasil tem uma dívida com os negros, ainda é um país cheio de preconceitos, de exclusões e de racismos sociais. Uma superficial leitura da história do Brasil mostrará que os negros sempre foram marginalizados, não tendo gozado ao longo destes séculos de nenhuma proteção legítima e constitucional. É preciso se lembrar que leis como a do Ventre Livre e Aurea, nunca resolveram o problema endêmico produzido pelo Ocidente em detrimento da vida e humanidade de muitos negros tratados como "bichos", "produtos", a para justificar a necessidade da Igreja de obter dividendos, foram considerados bíblico/antropologicamente, "sem alma". Sim, ainda lutamos, e essa luta está longe de acabar. Mas é preciso acreditar que podemos ir além, que podemos ocupar as cadeiras das Universidades, as cátedras de ensino intelectual, é preciso ter um sonho, lutar por ele e ir adiante. Que essa luta seja em todas as esferas da vida, que seja uma luta de quem acredita, de quem está disposto a não mais ser condicionado à exclusão, à marginalidade. O que não podemos admitir jamais é que a história dos negros seja a história que nos contam. O que está em jogo não é um dia para consciência disso ou daquilo, é dia de pensarmos no humano, na humanidade e na igualdade. O que nos une é o que nos faz humanos, imagem de um único Criador, e a cor da pele não está em jogo. Como dizia uma antiga música: "no tabuleiro da cor ninguém ganha, todo mundo perde e é geral a dor".


Samuel Braz | Teólogo e pastor


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