A partir do ano 1517 o dia 31 de outubro passou a ser um dia fundamental na história da cristandade. No dia 31 de outubro de 2017 celebramos 500 anos da Reforma Protestante. 500 anos desde que Martinho Lutero (1483-1546) deu início a reforma religiosa que mudaria não apenas o mundo do século XVI, mas todo mundo dos séculos vindouros.
Conforme afirma Justo L. Gonzalez[1], Lutero não aparece no meio de um vazio, mas foi o resultado de sonhos frustrados de gerações anteriores a sua. O contexto político e eclesiástico de Lutero era predominantemente católico. Boa parte dos líderes da igreja não se preocupava com o bem de seus rebanhos, mas se ocupavam com seus próprios interesses políticos e econômicos. A igreja estava mergulhada na decadência espiritual, moral e política.
Uma das maiores evidencias dessas decadência foi a venda de indulgências que fora autorizada pelo papa Leão X. As vendas de indulgências[2] tinham por de trás interesses econômicos e políticos. O papa Leão X, um dos piores papas daquela época[3], aprovou a venda de indulgências no território alemão, pois sonhava com o término da Basílica de São Pedro que estava com as obras paradas por falta de fundos.
De forma bem simples, a venda de indulgências consistia na venda da salvação. João Tetzel, um dos mais promissores vendedores de indulgências, chegou a afirmar que “tão logo a moeda no cofre soa, uma alma do purgatório voa!”. No entanto, não contavam com o fato de um monge agostiniano ter descoberto a graça. Para Lutero a doutrina da justificação pela fé somente não era simplesmente uma doutrina entre outras, mas o resumo de toda a doutrina cristã[4]. E foi por descobrir que a salvação é somente pela graça de Deus que Lutero não conseguiu ficar parado e deu início, talvez sem saber, a reforma que mudaria o mundo.
No entanto, não são todas as pessoas que celebram o fato de Lutero ter trazido a graça de volta para a igreja. Existem muito nos dias de hoje que afirmam que a reforma acabou com a lei. Alguns pensam que a afirmação de que a salvação é somente pela graça é uma anulação da observância da lei. Porém, essa não é uma compreensão correta acerca do pensamento da reforma protestante sobre a graça. O ensinamento dos reformadores consiste em afirmar que a graça é o favor divino que o ser humano não merece, mas que, Deus, em sua soberania e bondade, dá. A salvação é obra de Deus e não do ser humano. Essa é uma doutrina que não surge com a reforma, mas que faz parte do pilar de sustentação de todo cristianismo. Paulo afirma: Pois vocês são salvos pela graça, por meio da fé, e isto [a salvação] não vem de vocês, é dom de Deus; não por obras [atos realizados por nós], para que ninguém se glorie. (Ef 2:8-9).
A reforma protestante nunca levantou a bandeira da não observação da lei por causa da salvação pela graça. Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) pastor luterano em seu livro Discipulado dá atenção especial contra a graça barata e segundo ele, graça barata significa, dentre vários pontos abordados, justificação do pecado, e não do pecador e a pregação do perdão sem arrependimento[5]. O que a reforma faz é apenas colocar a graça e obra nos seus devidos lugares na gestação da salvação. Veja o que nos diz Paulo, em cujas cartas a palavra grega para graça (charis) aparece 100 vezes: Se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça (Rm 11:6).
O lugar das obras é a posteriori, como consequência da salvação e, não, como meio de salvação[6]: Porque somos criação de Deus realizada em Cristo Jesus para fazermos boas obras, as quais Deus preparou de antemão para que nós as praticássemos (Ef 2:10). Esse é o cerne do evangelho. Não somos salvos pelo que fazemos para Deus, mas sim, pelo que Deus fez por nós. Essa é a doutrina da graça. A partir daí, a observância da lei entra como resultado e não como meio para a salvação. Inclusive, poderíamos dizer que não tem como uma pessoa afirmar ter sido salva pela graça e não ter boas obras, visto que, elas são a evidência de nossa salvação.
Sendo assim o que aconteceu a 500 anos na Alemanha em outubro de 1517 foi uma vitória da graça, aquela graça da parte de Deus que se manifestou salvadora a todos os homens (Tt 2:11). E isso precisa ser celebrado, pois, estávamos mortos em delitos e pecados (Ef 2:1) e não havia nada que poderíamos fazer por nós mesmos, mas Deus interviu e deu-nos vida em Cristo (Ef 2:5-6) e abriu um novo caminho e uma nova maneira de se relacionar com Deus por meio de sua graça. Essa é a razão do por que como cristãos protestantes continuamos e sempre continuaremos afirmando: Sola Gratia!
Ismael Braz | Teólogo e pastor.
Bibliografia
1. A Era dos Reformadores p.19
2. A indulgência está relacionada com a clemência, tolerância e perdão. E consiste no ato de absolver alguém de um castigo ou uma punição.
3. A Era dos Reformadores p.52
4. Teologia dos Reformadores p.64
5. Discipulado pp. 9-10
6. Reforma. A vitória da graça p.10