Cidade de São Paulo, metrô, horário de pico. Quem já utilizou o transporte público da cidade que nunca dorme, sabe bem como é a experiência de ser levado contra a própria vontade para dentro de um vagão, sem ter a oportunidade de explicar que esperaria o próximo trem.
Em uma segunda-feira, nos primeiros momentos após o ápice matinal, em uma das estações, quando todos já haviam embarcado, surgiu um jovem que, de tão apressado para embarcar, corria como quem tenta salvar a própria vida. Ao ouvir o som e ver as luzes que sinalizam o fechamento das portas, acelerou ainda mais o passo e, ofegante, passou por entre elas, que já estavam fechadas quase por completo e prenderam seu pé esquerdo, fazendo com que caísse. A papelada que estava em suas mãos se espalhou pelo chão do metrô em movimento. Envergonhado, ele soltou o pé de entre as portas, recolheu os papeis e tomou o assento mais próximo que, por sinal, era preferencial.
A tal da fotofobia
Só então se dera conta de que a pressa e a vergonha o fizeram empurrar a senhora que iria se sentar naquele banco, pois ela o olhava insistentemente. Percebendo o que fizera, gentilmente lhe cedeu o lugar e ficou de pé ao seu lado, próximo à porta. Para a sua surpresa, a senhora manteve nele um olhar fixo, que ele visivelmente se esforçava para ignorar. Algumas estações depois, já incomodado e com as bochechas rubras, perguntou em tom de braveza:
- Posso ajudar, senhora?!
- Não, meu “fio”. Eu tô até que bem.
- Mesmo? Percebi que a senhora não para de me olhar!
- Ah, sim. É que eu “tô” aqui “matutando”, querendo saber porque você “tá” de óculos escuros dentro do metrô.
- É isso?
- Sim.
- É que eu sou fotofóbico.
- Que diabo é isso, “minino”?!
- Eu tenho fotofobia.
De repente, a senhora se levantou com o dedo em riste e, alterando a voz, começou a gritar:
- Ai, meu Deus! Fotofobia?! Um “minino” novo desses!
- Não, senhora, deixe-me explicar.
- Vai explicar é nada! É muito sério isso que você faz, garoto! Você não pode sair por aí “bateno” nas “pessoa”.
Os gritos da senhora já atraíam a atenção de todos no vagão, quando o rapaz tomou a palavra:
- Senhora, a luz....
- Não, não! A estação da Luz “tá” longe ainda, até lá você vai me ouvir!
- Não, eu não vou descer na estação da Luz. Eu dizia que a luz...
- Shhhh! Ouve quem sabe mais que você! Outro dia bateram num moço, no metrô, até ele morrer. O repórter disse que fizeram isso por causa de fotofobia.
Você acha que isso é certo?! Hein?!
- Senhora, eu não...
- Você não o que? Um “minino” novo, estudado que nem você, batendo nos outros por aí. Isso não se faz, não, viu? Você pode não achar certo o que a outra pessoa faz da vida dela, mas não tem direito de agredir ninguém. Agora eu sei porque “tá” de óculos, é pra ninguém te reconhecer, né?!
Vendo que não havia chance de defesa, o rapaz, de forma estoica, permaneceu ali, apenas ouvindo.
“Eu só ‘num’ lhe digo mais porque já vou descer, mas deixa eu te encontrar de novo, que você vai ‘vê’ !”, disse a senhora, que saiu pelas portas recém-abertas.
No banco da frente, observando tudo, estava eu, que não pude deixar de analisar aquela cena e aplica-la à vida cristã.
Conhecimento vesus experiência
Dotada de completa autossuficiência, aquela senhora se recusou a ouvir qualquer explicação do rapaz, que tentava a todo custo lhe explicar que não era um agressor, mas tinha um problema de visão e que por isso usava óculos escuros. Ela perdeu uma ótima oportunidade receber um pouco mais de instrução, pois, se tivesse parado para ouvir, ao invés de iniciar um sermão, teria descoberto que fotofobia é a sensibilidade que algumas pessoas tem à luz e a ambientes com muita luminosidade, que causa um grande incômodo nos olhos[1]. Ela saberia também que fotofobia e homofobia são coisas extremamente distintas.
Ah, essa humildade ausente, que nos impede de ouvir aqueles a quem julgamos saber menos! No âmbito cristão quantas vezes a experiência de vida amordaça a voz da palavra de Deus? A senhora havia vivido muitos anos a mais em relação ao rapaz, mas, obviamente, não tinha ideia do que estava falando. Me lembrei dos versículos 99 e 100 do salmo 119, que falam sobre algo parecido: “Compreendo mais do que todos os meus mestres, porque medito nos teus testemunhos. Sou mais prudente que os idosos, porque guardo os teus preceitos.” A vontade de fazer justiça com as próprias mãos, a tornaram insensível a para ouvir e aprender.
Simplicidade no falar, facilidade no comunicar
O que dizer sobre o rapaz? A pressa para entrar no vagão, as roupas que vestia, o conteúdo dos papéis que carregava (eu o ajudei a recolhê-los e consegui ler algumas frases) e a forma desajeitada como os segurava de baixo do baço sugeriam que se tratava de um advogado recém formado ou de um estagiário, mas isso pouco importa. De qualquer forma, a simplicidade daquela senhora não se fazia notória somente pela aparência, mas principalmente pela fala, que demonstrava pouca instrução. Sendo assim, não haveria uma forma mais simples de explicar a razão de estar usando óculos escuros em um ambiente interno? Haveria necessidade de utilizar um termo técnico e tão desconhecido pela maioria da população?
Embora a ‘explosão’ da senhora seja injustificada. Simplicidade não justifica sua atitude violenta. É triste notar que este tipo de situação ocorre aos montes dentro das nossas igrejas, pois perdi as contas de quantas vezes presenciei pregadores utilizando o púlpito para arrotar conhecimento através de falas pomposas e cheias de palavras difíceis, que inviabilizaram a compreensão da mensagem a pessoas menos instruídas.
Toda aquela cena me remeteu aos evangelhos, nos quais se pode ver o Criador, o Dono de todo o conhecimento, tornando os mistérios da eternidade acessíveis todos, das pessoas mais instruídas, como Nicodemos (João 3:1-21), aos mais indoutos, como os agricultores e pescadores que o seguiam. Para o Senhor, o ponto de partida não era o alto da sua divindade, mas a humanidade do próximo. Ele explicava o Reino do Deus através de elementos conhecidos das massas, como o pescador (Mateus 13:47-52) e o semeador (Marcos 4:3-11), tornando a mensagem clara a qualquer um que o escutasse.
Talvez o Reino de Deus seria manifesto a muitas pessoas mais, se adotássemos a humildade e a simplicidade do Mestre!
O rapaz ficou tão desconsertado com os gritos da anciã, que tirou rapidamente os óculos. Tarde de mais! Todos lhe dirigiam olhares furiosos, pois realmente acreditavam que fosse um agressor. Mais uma vez com a pele rubra, e agora temendo pela própria integridade física, ele apertou ainda mais os papéis em baixo do braço e desembarcou assim que as portas se abriram. Por sorte, levava consigo seus óculos escuros, pois, sem perceber, acabara descendo na tal estação da Luz.
Crônicas de um cristão comum.
[1] Mais informações sobre fotofobia podem ser encontradas no link http://www.posugf.com.br/noticias/todas/1970-o-que-e-fotofobia